Os Mega Projectos em Moçambique:
Que Contributo para a Economia Nacional?
Carlos Nuno Castel-Branco1
Características Económicas dos Mega Projectos
Mega
projectos são actividades de investimento e produção com
características especiais. Primeiro, a sua dimensão, definida pelos
montantes de investimento (acima de US$ 500 milhões) e impacto na
produção e comércio, é enorme. Por exemplo, se pegarmos em três mega
projectos apenas (a fundição de alumínio de Beluluane, Mozal; a mina de
areias pesadas de Moma; e o projecto do gás natural da Sazol, em
Inhambane), podemos verificar que: (i) o custo de investimento inicial
de cada um destes projectos é superior a US$ 1 bilião; (ii) a soma do
investimento realizado por estes três projectos é aproximadamente igual a
60% do PIB de Moçambique; (iii) o investimento nestes três projectos é
superior a 55% do investimento privado total realizado nos últimos 10
anos; (iv) a produção conjunta destes projectos aproxima-se de 70% da
produção industrial bruta de Moçambique. O valor da produção bruta da
Mozal (cerca de US$ 2 biliões em 2006) era maior que o Orçamento do
Estado de Moçambique; e (v) as exportações totais destes projectos
aproximam-se de três quartos das exportações nacionais de bens.
Segundo,
em contrapartida, os mega projectos são geralmente intensivos em
capital e, portanto, não geram emprego directo proporcional ao seu peso
no investimento, produção e comércio. Por exemplo, tomando os três mega
projectos atrás mencionados (cujo investimento se aproxima de 60% do
PIB, cuja produção se aproxima de 70% do produto industrial e cujas
exportações andam por volta de três quartos das exportações nacionais de
bens) podemos constatar que, no seu conjunto, empregam apenas 4% da
força de trabalho assalariada formal no sector industrial.
Terceiro,
são geralmente concentrados em torno de actividades mineiras e
energéticas – carvão e Moatize, gás de Pande e Temane, areais minerais
de Moma e Chibuto, Hidroeléctrica+ de Cahora Bassa (HCB), e a Mozal
(intensiva em energia), são apenas alguns exemplos.
Quarto, são
estruturantes das dinâmicas fundamentais de acumulação e reprodução
económica em Moçambique por causa do seu peso no investimento privado,
na produção e no comércio. Dado que são poucos e concentrados sobretudo
na indústria extractiva e de energia, as dinâmicas assim geradas são
estruturantes de uma economia excessivamente concentrada, produtora de
produtos primários, pouco diversificada em termos de produção, comércio,
qualificações e tecnologias e ligações, e de base social e regional
estreita (concentrada em algumas regiões e com impacto social limitado).
Quinto,
os mega projectos são área quase exclusiva de intervenção de grandes
empresas multinacionais por causa dos elevadíssimos custos, das
qualificações e especialização requeridas, da magnitude, das condições
competitivas e especialização dos mercados fornecedores e consumidores,
geralmente dominados por oligopólios e monopólios. Tipicamente, estas
empresas constroem altos níveis de integração vertical ao longo das
cadeias produtivas, diversificam horizontalmente para áreas de
actividade relacionadas, exercem controlo sobre os mercados em que, ou
com que, operam. Em economias menos desenvolvidas, como a de Moçambique,
estas empresas podem exercer considerável poder. Por exemplo, a BHP
Billiton, principal accionista da Mozal e das areias minerais de
Chibuto, tem um portfolio de investimento em Moçambique superior a 40%
do PIB Moçambicano o que lhe dá enormes vantagens na negociação política
com as instituições públicas.
Sexto, os custos de insucesso (ou
sunk costs) são altíssimos por causa da dimensão e complexidade destes
investimentos. Deste modo, estes empreendimentos são pouco sensíveis a
incentivos de curto prazo ou de ocasião, e muito sensíveis às
estratégias corporativas globais, dinâmicas dos mercados, condições
logísticas e de infra-estruturas, acesso barato e seguro a recursos
produtivos e custos do capital. Não admira, pois, que em Moçambique
estes projectos sejam orientados para mercados
externos
maiores e com acordos futuros, invistam massivamente na infra-estrutura e
logística que necessitam, exijam livre repatriamento de capitais,
negoceiem preços baixos para as matérias-primas e outros principais
insumos locais e isenções de direitos nas importações de equipamentos e
matérias-primas. Não essência, as decisões de investimento e sua
localização, expansão, escolha de mercados e tecnologia são o resultado
da combinação de estratégias corporativas num ambiente oligopolista, em
vez de respostas de curto e médio prazo a incentivos não estruturais.
Assim,
estratégias corporativas num ambiente de competição e cooperação
oligopolista definem os mega projectos, os quais, por sua vez,
estruturam a economia nacional. Logo, estas estratégias corporativas
estruturam a economia nacional. Por exemplo, a decisão de localização da
Mozal em Moçambique tem pouco a fazer com hipotéticas vantagens
comparativas nacionais (infra-estruturas tiveram que ser reconstruídas, a
energia é distribuída e controlada pela ESKOM, força trabalho barata e
não qualificada é escassa na Mozal, e as principais matérias-primas são
importadas). Assim, para a decisão sobre a localização da Mozal os
seguintes factores foram cruciais: um subsídio da ESKOM sobre a energia
(principal custo da fundição) para incentivar a Mozal a estabelecer-se
em Moçambique de modo a justificar a intervenção da ESKOM na rede de
energia Moçambicana; e a disponibilidade do Porto da Matola para as
importações e exportações da Mozal (mais de metade da actividade deste
Porto está associada ao comércio externo da Mozal). Nos restantes casos,
a existência de um recurso natural não renovável (gás, areias minerais,
carvão, etc.) é um factor determinante nas decisões de localização do
investimento que faz sentido dentro de um quadro estratégico corporativo
de controlo e exploração dos recursos.
Ligações e a Contribuição dos Mega Projectos para a Economia Nacional
A
contribuição dos mega projectos para economia nacional está,
obviamente, relacionada com o seu peso no investimento, emprego,
produção e comércio. No entanto, a riqueza gerada pelos mega projectos
pertence às corporações que os possuem e controlam e não à economia como
um todo. Portanto, o impacto da riqueza produzida pelos mega projectos
na economia nacional é relacionado com o grau de retenção e absorção
dessa riqueza pela economia e não apenas pela quantidade de riqueza
produzida. Quer dizer, o impacto da fundição de alumínio ou da
exploração do gás e das areias minerais depende de como é que a economia
retém e absorve parte do valor de produção e das vendas dessas
empresas. Não basta dizer que o impacto é grande porque os mega
projectos contribuem com três quartos das exportações de bens. Essas
exportações geram riqueza para os
mega projectos que, com
ela, podem pagar as suas importações. O que é que acontece na economia
como um todo? Será esta mais capaz de sustentar investimento e
importações para actividades diferentes dos mega projectos?
A
resposta a estas perguntas depende da capacidade de a economia reter
parte da riqueza produzida. Esta retenção faz-se por via das ligações
estabelecidas entre o mega projecto e a economia, pois estas ligações
permitem multiplicar investimento, redistribuir rendimento, promover
consumo e melhorar as capacidades produtivas. Se, por um lado, o mega
projecto for uma ilha isolada do resto da economia, a retenção será
mínima ou nula. Se, por outro lado, o mega projecto tiver estabelecido
fortes ligações com a economia que o rodeia, a retenção aumentará e, com
essa retenção, aumentará o impacto social positivo do mega projecto.
As
principais ligações económicas que se desenvolvem a partir de mega
projectos minerais e energéticos são: produtivas, tecnológicas, de
emprego, investimento/poupança e fiscais.
Ligações produtivas são
difíceis de desenvolver por causa da sofisticação tecnológica dos mega
projectos, da magnitude da sua produção e da fraqueza estrutural da base
produtiva nacional. Os mega projectos não têm grande vantagem e
interesse em vender a sua produção em Moçambique para promover
investimentos a jusante por causa da pequena dimensão do mercado
nacional e dos enormes custos que estariam envolvidos na construção de
projectos industriais consumidores das matérias-primas. Os mercados
externos são mais atractivos: maiores, com mais opções, com a
possibilidade de vender toda a produção sem ter que procurar e gerir
muitos compradores com diferentes especificações, e com a possibilidade
de negociar mercados futuros e contracto de médio prazo que estabilizem
as vendas e os preços.
Ligações produtivas a montante
(fornecedores nacionais dos mega projectos) também são difíceis de
estabelecer dada a fraqueza da base produtiva nacional e as exigências
relacionadas com a sofisticação dos standards de qualidade e
certificação que caracteriza a procura de bens e serviços industriais
dos mega projectos. A capacidade produtiva e logística para fornecer
bens e serviços aos mega projectos exige investimento em tecnologia,
formação e aprendizagem e em gestão e logística. No entanto, como os
mega projectos são muito poucos a soma da sua procura resulta numa
função de procura agregada descontínua. Logo, as potenciais empresa
fornecedoras não têm o incentivo e o espaço para investirem
suficientemente porque acabam por descobrir os riscos envolvidos em
tentarem focar numa procura descontínua da sua produção. Apesar destes
problemas, há algumas ligações a montante que já se desenvolveram com os
mega projectos.
Além destas questões, os contratos
firmados pelo Governo Moçambicano com os mega projectos não prevêem o
desenvolvimento de ligações a montante e jusante em Moçambique.
Ligações
tecnológicas são problemáticas. Por um lado, os mega projectos em
Moçambique não produzem “produtos tecnológicos”, ou capacidade
produtiva. Produzem produtos primários, os quais, em si, não permitem
transferir tecnologia e ganhos tecnológicas para empresas consumidores a
jusante. A qualidade e quantidade da procura, pelos mega projectos, de
bens e serviços industriais é uma pressão que pode incentivar mudanças
tecnológicas nas firmas que se situam na cadeia de produção a montante
dos projectos. No entanto, o carácter discreto e descontínuo da procura,
a fraqueza empresarial e as debilidades do sistema financeiro
dificultam a transformação tecnológica de empresas fornecedoras de mega
projectos. Algumas conseguiram fazer essa transformação, pelo menos
parcial. Em geral, no entanto, tal transformação acontece em ligação com
empresas estrangeiras e quando ou há outras fontes de procura além dos
mega projectos em Moçambique (o que permita eliminar as descontinuidades
da procura) ou o nível de investimento e de salto tecnológico
requeridos são pequenos.
Ligações tecnológicas também podem surgir
por causa da mobilidade de trabalhadores, gestores e técnicos dos mega
projectos (onde o nível e os standards são mais altos) para outras
empresas a jusante e a montante. No entanto, geralmente os mega
projectos oferecem melhores condições de trabalho e de carreira
profissional do que as outras empresas, pelo que a mobilidade da força
de trabalho dos mega projectos na direcção de outras empresas é muito
pequena. As condições das indústrias nacionais também não facilitam a
absorção desta força de trabalho treinada nos mega projectos. Por
exemplo, cerca de dois terços da força de trabalho formada pela Mozal
para a fase de construção da fundição nunca foi absorvida por outras
obras de construção. Em vez disso, esta força de trabalho foi integrada
no comércio informal. Se a economia não consegue absorver as
qualificações na quantidade fornecida, essas qualificações perdem valor
económico.
Ligações por via de emprego podem ser directas ou
indirectas. As directas estão relacionadas com o emprego gerado nos mega
projectos. Dado que quase todos eles são intensivos em capital, as
oportunidades de emprego directo são relativamente escassas. Assim, uma
empresa pode produzir dois terços das exportações de bens e 50% da
produção industrial bruta com recurso e um terço de todo o investimento
privado e só empregar 2% da força de trabalho formal do sector
industrial, como é o caso da Mozal. Se fosse possível fazer um uso
alternativo dos recursos, com os US$ 2.5 biliões investidos num único
mega projecto poderiam ter sido criadas 500 empresas espalhadas pelo
País,
gerando 40 vezes mais postos de trabalho do que o
mega projecto e distribuindo tais empregos mais equitativamente pelo
País, diferentes camadas sociais e diferentes tipos e níveis de
qualificação.
Por sua vez, o emprego indirecto não é o resultado
directo e automático do mega projecto. Para que o emprego indirecto
aconteça é necessário desenvolver ligações produtivas a montante
(fornecedores) e jusante (consumidores) do mega projecto. Ora, estas
ligações requerem novo investimento, capacidades adicionais, etc. Quanto
muito, o mega projecto proporciona uma oportunidade de ligação mas a
concretização dessa ligação depende de outras empresas, dos seus
interesses e capacidades.
Outra ligação possível é por via do
contributo do mega projecto para o aumento da poupança e do investimento
disponíveis para realizar outras actividades económicas. A
concretização destas ligações pecuniárias depende, por um lado, do
estabelecimento de ligações produtivas e tecnológicas a jusante e
montante e do emprego, pois a oportunidade de investimento pode atrair
poupanças para esse investimento. No entanto, como já foi discutido, as
ligações produtivas e tecnológicas ainda não se estão a desenvolver
intensivamente.
Por outro lado, as ligações pecuniárias dependem
de como é que o mega projecto afecta o nível de excedente disponível
para financiamento da economia e das outras empresas. No caso de
Moçambique, os incentivos fiscais atribuídos aos mega projectos impedem
que se reduza a carga fiscal que recai sobre as outras empresas e que
melhore a saúde fiscal do Estado. Logo, o nível de excedente disponível
tanto nas empresas como nos cofres do Estado não é ajudado pelos mega
projectos. Para além disto, parcelas consideráveis do capital privado
nacional preferem associar-se a mega projectos tirando proveito das
reservas de acções destinadas a Moçambicanos nas concessões mineiras e
outras. Assim, ao invés de gerar mais excedente pecuniário disponível
para financiamento de outros sectores, os mega projectos acabam por
atrair o excedente desses outros sectores para as áreas mineiras e
energéticas.
Portanto, de um modo geral os mega projectos ainda
não estão a contribuir para ajudar a gerar mais excedente para
financiamento de outras empresas e da economia como um todo.
Os
mega projectos reúnem todas as condições para serem fonte privilegiada
de receitas fiscais. Isto acontece porque, por um lado, estes projectos
são enormes e os seus custos de insucesso (sunk costs) são extremamente
altos, que diminui a sua mobilidade e os torna pouco sensíveis a
incentivos ocasionais, de curto prazo e não estruturais.
Por
outro lado, são projectos com interesses estratégicos localizados, quer
por serem centrados na exploração de recursos naturais não renováveis
(energéticos e minerais) com localização bem definida, quer por serem
guiados por estratégias corporativas oligopolistas que determinam a
escolha de localização. Por causa disto, estes projectos não têm
interesse em circular à procura de incentivos marginais, pois as suas
decisões locacionais são sempre estratégicas.
No caso de
Moçambique, o potencial fiscal dos seis mega projectos mais conhecidos
(Mozal, areias minerais de Moma e Chibuto, gás natural, carvão e HCB),
se explorado, pode duplicar a receita fiscal do Estado. Isto
contribuiria para reduzir a dependência externa, consolidar a soberania
política e aumentar a capacidade do Estado de investir na diversificação
da base produtiva e de crescimento, no fornecimento de serviços
públicos fundamentais e no desenvolvimento de um sistema de protecção,
segurança e assistência social. Também permitiria reduzir a carga fiscal
para outras empresas o que aumentaria o excedente disponível para
financiamento de actividade económica em outras áreas de actividade e
regiões.
Portanto, uma política fiscal racional e responsável
perante os mega projectos pode criar as condições para gerar várias
outras ligações potenciais: aumentar a disponibilidade de poupança e
capacidade de financiar investimento e custos correntes, diversificar a
base produtiva, aumentar as possibilidades de promover ligações
produtivas e tecnológicas a montante e jusante, gerar mais emprego
indirecto em condições dignas e decentes, etc.
As ligações fiscais
têm duas outras vantagens sobre as restantes ligações. Primeira, são
mais fáceis de estabelecer. Segunda, os recursos assim gerados são mais
livres para usos alternativos destinados a gerar pólos e dinâmicas de
desenvolvimento alternativos aos mega projectos, o que pode contribuir
para um desenvolvimento mais sustentável, criador de novas oportunidades
e livre do perigo de criação de dinâmicas de acumulação exclusivamente
baseadas em rendas.
No entanto, o Governo Moçambicano atribui
incentivos fiscais muito generosos aos mega projectos já aprovados,
apesar de recentemente ter revisto a legislação fiscal para novos mega
projectos. De tal modo são generosos estes incentivos que enquanto os
megas projectos contribuem com cerca de 12% do PIB e três quartos das
exportações de bens, o seu contributo fiscal é inferior a 1% do PIB. Os
mega projectos estão todos no grupo das 10 maiores empresas de
Moçambique, mas nenhum deles se situa entre os 10 maiores contribuintes
para o fisco.
Face às dificuldades de realizar ligações
produtivas, tecnológicas e de emprego, e dados os incentivos fiscais que
impedem ligações pecuniárias, não é de admirar que o impacto real dos
mega projectos na acumulação e reprodução económica seja reduzido.
É
argumentado que o contributo que os mega projectos fazem para dotar as
comunidades com melhores condições de sobrevivência não pode ser
subestimado. No entanto, há alguns aspectos a considerar sobre estes
contributos. Primeiro, a experiência mostra que em muitos casos este
esforço local é mais de compensação (por exemplo, pela deslocação de
comunidades para dar lugar ao mega projecto) do que de desenvolvimento e
é mais útil para reforçar a imagem e a influência da empresa do que
para resolver. Segundo, a maioria das infra-estruturas criadas (escolas,
centros de saúde, estradas, bairros residenciais, meios sanitários,
etc.) são entregues ao Estado para utilização social, por serem
adequadas á prestação de serviços públicos. O orçamento corrente do
Estado é posto sob pressão para financiar o professor, o médio, o
enfermeiro, os livros, os medicamentos, a manutenção da estrada. Sem
esta intervenção do Estado, essas infra-estruturas não operam. Como os
mega projectos beneficiam de generosos incentivos fiscais, eles não
contribuem como poderiam para o Orçamento do Estado, de modo que não
contribuem para o funcionamento das infra-estruturas criadas. Assim os
projectos comunitários dos mega projectos podem funcionar como um pau de
dois bicos: aparentemente ajudam a comunidade, mas põem pressões
insustentáveis sobre as capacidades financeiras do Estado para manter e
explorar devidamente estas capacidades. Terceiro, há casos em que as
dádivas comunitárias dos mega projectos são, de facto, se não de jure,
uma alternativa a pagar impostos e/ou a engajar a comunidade, de facto,
na gestão dos recursos e oportunidades de desenvolvimento locais.
Portanto,
a questão do contributo comunitário dos mega projectos não deve, de
modo algum, afectar a análise sobre o seu contributo fiscal para o
Estado.
Para além das ligações multiplicadoras
Há vários outros factores, para além das ligações, que determinam o contributo dos mega projectos para a economia.
Primeiro,
se estes projectos são poucos e concentrados em produtos primários
básicos, as dinâmicas e estruturas económicas tendem a tornar-se muito
vulneráveis e, até, voláteis. Pequenas variações nos mercados
internacionais e nas condições competitivas (nos preços, especificações e
quantidades
das exportações) podem ter enormes impactos
macroeconómicos destabilizadores. Por exemplo, a crise económica
internacional está a ter um fortíssimo impacto no investimento e na
procura nas economias desenvolvidas, o que as pode obrigar a contrair as
suas importações de produtos primários de economias como Moçambique,
bem como os fluxos de capital para estas economias. A crise da indústria
automóvel, por exemplo, pode reduzir a procura de alumínio. Dado que as
exportações de Moçambique estão concentradas no alumínio, esta crise
pode ter um impacto dramático nas receitas de exportação. Uma economia
mais diversificada seria menos vulnerável.
Outro elemento de
vulnerabilidade associado com a concentração em produtos primários é o
risco de substituição das matérias-primas dados os contínuos
aperfeiçoamentos científicos e tecnológicos da produção. O ciclo de
muitos produtos primários é muito curto, pelo que os respectivos
mercados tendem a ser voláteis e entrar em crise. Este problema é uma
das causas mais importantes das constantes crises de acumulação
económica das economias subdesenvolvidas, dado que estas são obrigadas a
fazer ajustamentos macroeconómicos constantes nos níveis dos salários,
procura, oferta, emprego, crédito, etc., especialmente se as suas bases
produtivas e comerciais são muito concentradas em alguns produtos
primários.
Segundo, os mega projectos são, obviamente, grandes
consumidores de recursos especializados afectando, deste modo, a
disponibilidade e o custo de tais recursos para os outros projectos,
assim como a sustentabilidade da reprodução económica. Por exemplo, os
três projectos já mencionados consomem mais de dois terços da energia
eléctrica consumida em Moçambique e recrutam parte significativa dos
seus trabalhadores especializados e semi qualificados nacionais de
outros projectos e actividades, incluindo de outras empresas de capital
estrangeiro.
Terceiro, pelo seu poder económico e pela economia
política dos recursos minerais, os mega projectos minerais e energéticos
habitualmente têm prioridade sobre qualquer outra utilização da terra e
dos recursos, quer por outros sectores (como o turismo, a agricultura,
reservas florestais, etc.) quer pelas comunidades locais. Será que esta
prioridade se justifica sempre? Até que ponto é que uma exploração
mineira gera, para a comunidade e para a economia nacional, numa
perspectiva sustentável, mais recursos, capacidades e opções do que
aquelas actividades eliminadas ou preteridos em benefício de mega
projectos?
Quarto, uma economia dominada por mega projectos gera
dinâmicas de economia política (relações entre o Estado e o capital)
desenvolvidas em torno de rendas de recursos não renováveis. Para além
do óbvio problema de sustentabilidade, dado que os recursos são não
renováveis, este tipo de
economia política tende a gerar
capitalismos parasitários e de opções restritas, e a reduzir o espaço e
as oportunidades políticos por causa das habituais alianças
político-económicas para promover mega projectos mineiros como dinâmica
dominante, senão mesmo única, de acumulação de rendas.
Quinto, as
indústrias extractivas, energéticas e associadas, pelas suas
características, tendem a gerar impactos ambientais de grande
envergadura e muitas vezes negativos. Nós vivemos numa era de profundas e
rápidas mudanças climáticas, cujos efeitos nocivos já se fazem sentir
claramente. Se o impacto ambiental das nossas actividades continuar a
ser considerado secundário ou continuar a ser entendido como estando em
contradição com o desenvolvimento e crescimento, então nós vamos
contribuir para acelerar a erosão, o empobrecimento dos solos, a
escassez de água potável, a contaminação atmosférica, as mudanças
climáticas e a deterioração das condições e oportunidade de vida para
todos nós. Num certo sentido, o ambiente propício à vida é o nosso mais
importante recurso dinâmico e também um dos mais difíceis de renovar.
Dependendo
de como é que estes problemas sejam resolvidos, o contributo dos mega
projectos para a economia podem ser mais ou menos positivos.
Mega projectos, Fiscalidade e Economia Política
Pela
sua importância, é relevante abordar com um pouco mais de atenção a
questão da fiscalidade relativamente aos mega projectos. São vários os
argumentos sobre as motivações que conduziram à concessão de incentivos
fiscais tão generosos aos mega projectos. O que é mais provável é que
tenha havido vários factores em conjugação, entre os quais:
Inexperiência e falta de informação,
Ansiedade com os indicadores macroeconómicos (investimento, crescimento e défice da balança comercial),
Restrições
monetárias que obrigaram o Governo a virar-se para uma política de
portas abertas ao investimento directo estrangeiro,
Pressão
de organizações financeiras internacionais para o estabelecimento de um
sistema de incentivos ao investimento não discricionário, o que
conduziu o Governo a ajustar a legislação
das Zonas Francas Industriais (destinada a indústrias pequenas, móveis e intensivas em trabalho) aos mega projectos,
Crença
no potencial de desenvolvimento de projectos âncora de grande
envergadura sem entendimento real das condições necessárias para a
materialização de ligações.
Sejam quais forem essas motivações, a
questão agora é que tais incentivos existem e já criaram dinâmicas
próprias de economia política. Por um lado, não será fácil convencer as
empresas a modificar os seus contratos nem será fácil adoptar legislação
fiscal radicalmente nova para novos investimentos enquanto os primeiros
ainda gozarem de incentivos fiscais tão generosos.
Por outro
lado, uma parte considerável da burguesia capitalista nacional,
incluindo membros e funcionário seniores do Governo, tem interesse
directo nos mega projectos por neles participarem como accionistas. Dado
que os seus dividendos estão em directa relação com os lucros e em
inversa relação com os impostos cobrados sobre esses lucros, é pouco
provável que essas novas classes proprietárias nacionais, e o Governo
sobre o qual exercem influência, tenham o interesse e o espaço político
para aceitar facilmente renegociar os contratos com os mega projectos,
especialmente se esta renegociação resultar numa transferência líquida
de recursos financeiros das multinacionais para o Estado.
Este
problema, de os padrões de acumulação e reprodução da burguesia
capitalista nacional estarem relacionados com as proximidades políticas e
dependência de mega projectos, levanta um problema mais geral
relacionado com as opções de desenvolvimento: até que ponto os padrões
de acumulação, os interesses económicos e as práticas políticas da
burguesia capitalista nacional são reprodutores de vulnerabilidade
económica e pobreza? Como já foi discutido, através de ligações fiscais e
outras os mega projectos podem contribuir para mudar de padrões de
acumulação (diversificando as bases produtivas, tecnológicas e comercias
e alargando os centros regionais e sociais de acumulação), financiar a
expansão e a melhoria da qualidade dos serviços públicos básicos
(educação, saúde, obras públicas, gestão ambiental) e financiar a
expansão de serviços de segurança e protecção social efectivos.
Ora,
ao favorecer o desenvolvimento de padrões de acumulação e reprodução
directamente proporcionais aos lucros dos mega projectos e inversamente
proporcionais aos impostos que estes pagam, não estará o Estado a
sacrificar as oportunidades de diversificação e alargamento da base
económica, de providenciar serviços públicos de qualidade e de construir
serviços sociais de
qualidade? Não estará, o Estado, em
associação com a burguesia capitalista emergente em Moçambique, a
construir alternativas contrárias ao seu próprio discurso oficial de
combate à pobreza? Até que ponto é que as opções de políticas públicas,
que em parte reflectem as alianças de interesse social e económico que
se articulam através do Estado, não são reprodutoras da dependência
externa e, por isso, redutoras da soberania nacional sobre as políticas,
opções e recursos? Ao favorecer o desenvolvimento de um padrão de
acumulação assente em rendas sobre recursos naturais, até que ponto é
que o Estado, em aliança com a burguesia nacional capitalista emergente,
não está a comprometer as suas próprias opções e campo de manobra
políticas e a contribuir para a não sustentabilidade do sistema de
reprodução económica por o assentar em rendas sobre recursos não
renováveis?
Por vezes, é argumentado que a aliança entre
capitalistas nacionais (incluindo altos funcionários do Estado) e o
capital estrangeiro dominante da indústria extractiva garante a defesa
dos interesses nacionais. Que interesses são esse, de quem e como é que
são garantidos? Certamente, quando as rendas do capital nacional
dependem dos lucros e das baixas taxas de impostos aplicadas a esses
lucros, os “interesses nacionais” representados não estão em linha com a
diversificação da base produtiva comercial e tecnológica, com o
alargamento da base regional e social de acumulação, com o
desenvolvimento de serviços públicos sociais básicos de alta qualidade e
com o financiamento de sistemas de assistência, segurança e protecção
social que façam sentido económico e social. Portanto, a questão
permanece: que interesses nacionais são assim defendidos?
É
importante continuar a aperfeiçoar o argumento sobre por que é que a
renegociação dos contratos com os mega projectos tem relevância
estratégica.
Primeiro, os generosos incentivos fiscais dos mega
projectos existem porque Moçambique recebe mais de US$ 1.5 biliões por
ano em ajuda externa. Se esta ajuda não existisse, ou fosse
significativamente menor, o Estado entraria em colapso se não cobrasse
impostos. Portanto, os incentivos fiscais desta magnitude a este tipo de
projectos mantêm Moçambique na dependência externa e transferem ajuda
dos pagadores de impostos nos Países doadores para os cofres das
empresas multinacionais.
Segundo, a generosidade fiscal com os
mega projectos sobrecarrega as pequenas e médias empresas nacionais e os
trabalhadores formais, cuja carga fiscal tem que ajudar a compensar
pelos incentivos recebidos pelos mega projectos.
Terceiro,
estes incentivos sinalizam o tipo de investimento em que o Governo
Moçambicano tem interesse: mega, estrangeiro e concentrado em produtos
primários não renováveis. Mudar o sistema de incentivos pode ajudar a
sinalizar que Moçambique tem mais interesse numa base diversificada de
investimento, produção, tecnologia e comércio. Aliás, gerando mais
receitas fiscais, o Estado pode ajudar a criar as condições objectivas
para o desenvolvimento da pequena e média empresa, para o alargamento da
base de acumulação e a diversificação da base produtiva.
Quarto,
os incentivos, que representam uma perca de receita potencial, impedem o
Governo Moçambicano de investir na diversificação da base produtiva,
tecnológica e comercial, na geração de emprego, no fornecimento dos bens
públicos sociais fundamentais e na protecção social.
Quinto, os
recursos explorados pelos mega projectos não são renováveis. Portanto, é
preciso encontrar substitutos para estes recursos quando eles se
esgotarem. Tais substitutos podem ser reservas líquidas para novos
investimentos ou a diversificação da base produtiva. Deste modo, quando
os recursos não renováveis se esgotarem a economia de Moçambique, e os
Moçambicanos em geral, terão opções de desenvolvimento ainda melhores
que as que existem hoje.
Sexto, pela sua natureza e
características, os mega projectos não tomam decisões locacionais com
base em incentivos fiscais e não necessitam desses incentivos. Além
disso, a magnitude dos seus sunk costs dá-lhes pouca mobilidade e reduz o
seu campo de negociação.
Para vencer esta batalha será necessário
criar uma coligação nacional que faça investigação e advocacia e que,
por via da pressão social informada, force a adopção das mudanças.
Ninguém vai mudar nada se não sentir que perde não mudando e que ganha
mudando.
Esta coligação nacional deve desenvolver ligações
externas. Ao nível regional, as ligações devem focar-se no esforço de
harmonização de abordagens, interesses e práticas. Com o resto do Mundo,
as ligações devem orientar-se para dois tipos de pressão: (i) destinada
a aumentar a responsabilidade fiscal e social das empresas
multinacionais; e (ii) destinada a construir um ambiente internacional
de investimento que permita que as economias subdesenvolvidas possam
reter nos seus Países uma parte muito maior da riqueza que produzem.
Focos para a Sociedade Civil no que diz Respeito à ITIE e Mega Projectos
A
ITIE é uma oportunidade para que sociedade civil possa participar na
gestão dos recursos que, em respeito pelo espírito dos imperativos da
Constituição da República, pertencem ao Povo. A transparência e o
detalhe da informação são cruciais para que a sociedade, como um todo,
esteja à altura de participar na gestão correcta dos recursos não
renováveis em Moçambique, faça as análises económicas e sociais
necessárias e realize as acções de advocacia e de governação para
garantir a gestão correcta destes recursos. O exercício pleno do dever e
direito do Povo de gerir os seus recursos requer uma sólida base de
informação. Portanto, o acesso transparente e atempado à informação
detalhada, quer das empresas, quer do governo, é um elemento crucial
desta iniciativa.
Contudo, é preciso ir mais longe do que
simplesmente lutar pela transparência. É preciso prosseguir outros
objectivos fundamentais, pelo menos tão importantes como a
transparência, nomeadamente:
Os recursos naturais
utilizados pela indústria extractiva não são renováveis, o que quer
dizer que sua exploração hoje resulta na sua exaustação em algumas
décadas. Portanto, a ITIE deve garantir que a gestão, concessão e
exploração destes recursos sejam feitas cautelosamente de modo a
prolongar a sua utilidade para Moçambique e a evitar a sua rápida
exaustão, ao mesmo tempo que permite gerar novas oportunidades de
desenvolvimento não dependentes desses recursos.
A
indústria extractiva tem o potencial de gerar um enorme fluxo de
receitas públicas por algumas décadas, assim permitindo que Moçambique
deixe de ser dependente da ajuda externa e, por conseguinte, consolide a
soberania do Estado e do Povo sobre os seus assuntos políticos,
económicos e sociais. Se estas receitas forem utilizadas para gerar
reservas e oportunidades de desenvolvimento alargado e diversificado da
base produtiva, tecnológica e comercial, então Moçambique poderá tornar a
indústria extractiva numa alavanca de desenvolvimento real. Portanto, o
ITIE em Moçambique deve:
Garantir a maximização das
receitas públicas provenientes da indústria extractiva, através dos
royalties, impostos, preços a que os recursos são vendidos, e outras
fontes de receita. Se necessário, os acordos existentes entre o Governo e
as empresas concessionárias (sobre impostos, royalties, preços de
venda, etc.) devem ser revistos de modo a maximizar as receitas
públicas. De outro modo, de que valeria
a transparência
de informação se as receitas forem mínimas? A sociedade civil deve estar
pronta para ajudar e pressionar o Governo, por todos os meios legais, a
levar a cabo tais revisões.
Os ganhos públicos com a
exploração dos recursos não renováveis sejam aplicados quer na formação
de reservas, na criação de outras oportunidades de desenvolvimento com
base alargada e diversificada, no fornecimento de serviços sociais
públicos fundamentais e na construção de sistemas de protecção social,
de modo a que as futuras gerações de Moçambicanos tenham plena
oportunidade de desenvolverem o País mesmo quando os actuais recursos
não existirem.
Uma parte substancial e significativa das
receitas públicas seja alocada às comunidades onde os mega projectos
funcionam, de modo a que sejam estas mesmas comunidades a gerir estes
ganhos em seu benefício e em benefício das futuras gerações, de forma
sustentável, democrática, equitativa e racional.
•
Além das
ligações por via das receitas públicas, a indústria extractiva tem o
grande potencial de proporcionar o desenvolvimento de ligações
produtivas a montante e a jusante, pelo que a implementação do ITIE em
Moçambique deve igualmente prestar atenção especial a estes
desenvolvimentos.
•
A indústria extractiva tem o potencial
de se tornar numa importante fonte de emprego decente e digno no País,
pelo que a ITIE em Moçambique deve prestar especial atenção não só à
promoção do emprego mas também à qualidade e às condições de emprego,
nomeadamente aos níveis salariais, condições de segurança e higiene no
trabalho, pacotes sociais de apoio aos trabalhadores e suas famílias,
formação profissional, acordos colectivos de trabalho, e respeito pelo
direito associativo dos trabalhadores em defesa dos seus interesses, por
via sindical ou outra via legalmente permitida.
•
O impacto
ambiental da indústria extractiva, geralmente de grande envergadura e
com tendência a ser nocivo, deve ser um foco central da ITIE em
Moçambique. O meio ambiente favorável à reprodução da qualidade de vida
adequada e de oportunidades de desenvolvimento presentes e futuras
diversificadas e acessíveis para todos é um dos nossos
•
A
indústria extractiva é geralmente desenvolvida em competição com outras
actividades, recursos e modos de vida alternativos. Nos locais onde se
podem extrair recursos minerais não renováveis há comunidades que
desenvolvem outras actividades e há oportunidades de desenvolver outros
projectos e outros recursos (turísticos, agrícolas, florestais,
faunísticos, marinhos, etc.). A ITIE em Moçambique deve permitir superar
estes conflitos de interesse, tomando em conta os custos de
oportunidade e os benefícios relativos para o País e para as comunidades
de escolher entre a indústria extractiva e outras alternativas, quer a
curto e médio prazo, quer a longo prazo numa perspectiva
intergeracional. Neste contexto, é necessário garantir que a indústria
extractiva não seja automaticamente a prioridade em todos os casos,
deste modo permitindo uma gestão equilibrada do potencial e
oportunidades de desenvolvimento para todos, no presente e no futuro.
Neste
processo, há alguns debates políticos básicos que é preciso que a
sociedade civil sustente e ajude a resolver. Um é o debate sobre o
envolvimento do Estado, e em especial de seus representantes e
funcionários a nível mais alto, nos interesses da indústria extractiva.
Enquanto este envolvimento continuar, será muito difícil ter um Estado
minimamente isento para tratar dos assuntos do desenvolvimento da
economia nacional, em vez dos assuntos dos dividendos que os seus
funcionários recebem da indústria. Em particular, será muito difícil ter
políticas e prática públicas que se ocupem de encontrar soluções
sociais para problemas sociais se os dirigentes públicos se preocuparem
mais com os seus negócios privados do que com os assuntos públicos.
Relacionado
com este tema, há o dos impostos, das ligações económicas mais gerais, e
o das políticas de despesa pública. É absolutamente fulcral vencer a
batalha da transparência da informação e da tributação dos mega
projectos, mas também é crucial vencer a batalha por uma política de
despesa pública com enfoque na diversificação da base produtiva,
comercial e tecnológica, alargamento dos centros de acumulação,
fornecimento de serviços públicos de alta qualidade e construção de um
sistema de protecção social eficaz e amplo. Portanto, a acção precisa de
tocar três aspectos indissociáveis: acesso a informação, tributação e
despesa. Deixando um de lado, nãos era possível tratar dos outros com
seriedade.
Igualmente, é preciso avançar muito mais na análise e
solução do problema das “comunidades”. Uma vez que a lei estabelece que
uma certa percentagem dos recurso é alocada ás comunidades, a grande
questão
vai ser o que è que as comunidades vão fazer com tais recursos? Quem e o
que são essas comunidades? Quais são as dinâmicas de poder e de
economia política nas comunidades e como é que elas afectam o uso e a
distribuição dos recursos e a sua eficácia no bem comum? Sobre que
assuntos podem as comunidades decidir? Como é que essas comunidades
podem garantir que recebem o que têm direito legal de receber (sobre que
montante é que a percentagem de recurso a alocar às comunidades se
aplica e quem conhece esse montante)? Como se mede a eficácia do uso
desses recurso pelas comunidades: pelas infra-estruturas e outras
actividades de impacto imediato ou pela construção de substitutos para
os recursos dado que eles não são renováveis?
Alguns propõem que
as comunidades se tornem accionistas dos projectos (mega projectos em
geral, ou indústria extractiva em especial) realizando as suas acções
com a terra. Para além dos problemas legais derivados da Lei de Terras e
da propriedade da terra pelo Estado, há outro problema fundamental com
esta abordagem. Se as comunidades se transformassem em accionistas dos
projectos (usando, para isso, a terra sob seu controlo ou outro meio
qualquer) elas tornar-se-iam em capitalistas minoritários sem poder
efectivo nas empresas. Entretanto, por associarem o seu interesse ao
lucro da empresa, essas mesmas comunidades perderiam o interesse na
tributação do capital, nas relações de trabalho, nas questões
ambientais, no debate sobre usos alternativos e competitivos dos
recursos e oportunidades, etc. Quer dizer, a agenda política, social e
económica da comunidade passaria a ser decida pela agenda das
multinacionais. Além disso, o que é e quem é a comunidade e como é que
as dinâmicas locais de poder afectam as possibilidades de ligação com as
empresas e os possíveis ganhos e percas com essa ligação. Do ponto de
vista comunitário, pode ser muito mais importante manter a separação da
indústria e o foco na agenda comunitária do que tentar fazer alianças
que dão um aspecto formal democrático ao capitalismo mas servem
sobretudo para subjugar a agenda localà das empresas.
Portanto, a simples alocação de recurso à comunidade é apenas o início da questão, e não pode, de modo algum, ser o seu fim.
As
organizações da sociedade civil Moçambicana são chamadas a fazer parte
desta iniciativa. Esta é uma área de actividade que interessa e deve
envolver todas as organizações sociais nacionais, sejam elas de
investigação científica, advocacia ou de actividade comunitária, pois
esta é uma oportunidade histórica para arrancar o País da dependência,
para garantir a gestão correcta dos nossos recursos e para assegurar um
desenvolvimento com base diversificada e alargada hoje e no futuro. É
uma oportunidade única e histórica para que a sociedade Moçambicana
participe organizada, sistemática e informadamente na gestão dos seus
recursos naturais não renováveis.
Para que os princípios
acima mencionados sejam adoptados e implementados, para que esta
iniciativa se alargue a outras indústrias com características
semelhantes ou relacionadas (como as florestas, as pescas, os recurso
hídricos e barragens, as metalurgias e metalo-mecânicas associadas,
etc.), é necessário que as organizações da sociedade civil se organizem
para efectivamente participarem nesta luta e na monitoria deste
processo. Este nosso Fórum pode ser o pontapé de saída para essa
organização e para conquistarmos o direito de protagonismo que afirmamos
querer ter, e cumprirmos o dever de cidadãos que reclamam pelo direito
de exercer poder na gestão dos recursos que são seus e do presente e do
futuro com que sonham.
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